Segurando as Pontas: Quem cuida de quem materna?
A maternidade fica menos solitária quando se tem uma rede de mulheres que trocam acolhimento, escuta e empoderamento sem tabus.
Eram 20h30 de uma quarta-feira de feriado quando cerca de vinte mães se encontraram virtualmente para mais uma sessão semanal do grupo terapêutico mediado pela psicóloga Marcelle Louzada, uma das coordenadoras do coletivo Segurando as Pontas. Pela próxima hora, essas mulheres puderam refletir, extravasar e compartilhar sentimentos e visões sobre trabalho: o remunerado, o invisível, o prazeroso. Naquele espaço seguro de troca, uma mãe amamentava, outra soltava a fumaça espessa do trago em um baseado, outra aplicava um remédio contra piolho na cabeça de sua criança enquanto dançava ao som de Mama África, música que fechou a sessão.
A experiência daquela noite simboliza bem a proposta do coletivo de mães antiproibicionistas que surgiu, há dois anos, com o objetivo de proporcionar saúde mental e autonomia financeira a mulheres que vivem a maternidade.
“É um ativismo político, porque a maternidade é política”, explica Daniela Arruda (37), médica e mãe de dois que também coordena o grupo. “A gente está na contramão de muitas coisas para trazer acolhimento para as mães, para sair do rastro do proibicionismo”.
De um encontro virtual de mulheres puérperas que, em plena pandemia, buscavam pertencimento, identidade e meios de sobreviver, mental e financeiramente, ao isolamento social, o Segurando as Pontas foi formando uma rede de profissionais que se fortalecem oferecendo serviços, sobretudo de saúde integrativa, a preços sociais para mães que se identificam com a proposta.
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Maternidade Sã:
“O carro-chefe do Segurando as Pontas é a saúde mental. A gente trabalha a partir da produção desejante da mãe, e não a partir da reverberação da culpa. A gente não reforça o estereótipo da mãezinha, não se coloca a serviço da culpabilidade, da sobrecarga, das mães vítimas da sociedade”, conta Marcelle Louzada (43) que, além de psicóloga e supervisora clínica, é doutora em educação — e, claro, mãe. “A gente sabe nosso lugar histórico, social, emocional. Diante desse letramento, como escrever outra história? Sobretudo antiproibicionista? E não só antiproibicionista com maconha, mas com tabus sociais”.
Tabus que, na maternidade, não são relacionados apenas ao uso de substâncias, mas a uma série de imposições que recaem sobre os ombros das mulheres: como se vestir, se portar, se relacionar, o que falar (ou calar), como educar, cuidar, maternar.
“Chegam mulheres com diferentes questões, é interessante a gente estar aqui para acolhê-las, porque tem tanto grupo de mães, mas com tanto tabu, tanta mistificação, tanto jeito certo de fazer maternidade. Estamos aqui por que somos plurais”, diz Marcelle.
Por isso, além da oportunidade de acessar atendimento médico integrativo e terapia psicológica a preços acessíveis (incluindo algumas vagas sociais, gratuitas) e com o viés da redução de danos, há o grupo terapêutico, às quartas, aberto a todas as mães da rede, com dinâmicas que celebram a multiplicidade que existe dentro da maternidade.
“Ter um espaço onde a gente pode se desproibir é o mais mágico”, conta a artista Clara Crocodilo (30), mãe da Madalena e coordenadora do projeto.
Autonomia financeira para emancipação emocional:
Se a saúde mental e integrativa é o principal foco do coletivo, a autonomia financeira é um dos meios para alcançá-la.
“As mães de 1960, as mães de 1980 e as mães de 2024 ainda, muitas delas, dependem da economia financeira dos parceiros, e ficam em relacionamentos”, explica Marcelle. “Então nós pensamos em fortalecer a autonomia financeira dessas mulheres”.
Hoje, dez psicólogas, uma médica, duas professoras de dança e uma de inglês estão à disposição para atender a uma rede de mais de 400 mães na comunidade Segurando as Pontas no WhatsApp, que conta ainda com um brechó e uma vitrine de serviços para quem quiser mostrar e oferecer seu próprio trabalho, fazendo girar uma economia de/para mães.
Encontros e Afetos:
Mas, é na identificação entre maconheiras que reside a sensação de pertencimento, verdadeiro alívio para quem sente a solidão que a maternidade traz, em maior ou menor medida, a todas as mulheres.
“Nós, mães usuárias, enfrentamos dia a dia o preconceito sobre maternidade e maconha, então, achar esse coletivo é um abraço gigante”, conta a mochileira, professora de espanhol e empreendedora Luna (32), mãe de Gaia e integrante da rede.
Seja pelo chat do WhatsApp, onde rolam conversas das mais variadas, de sugestões de fralda a confissões íntimas, seja nos encontros presenciais, que reúnem mães e crias em imersões terapêuticas por todo o país, a oportunidade de criar vínculos e amizades é um precioso bálsamo para a saúde mental das mães que fazem parte do coletivo.
“É afeto, sabe? Uma coisa que a gente fica com um pouco de dificuldade de acessar depois que vira mãe. Um afeto da gente com a gente”, conclui Clara.